quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Notas de uma viagem VII

Épsilon:

"Miserere"




O Rio de Janeiro cada vez mais me faz entender o porquê de ser a "Cidade Maravilhosa". Mas (porque há sempre um mas) decidi desviar-me dos caminhos normais, turísticos e consensuais. Só se conhece verdadeiramente uma terra se a vivermos como os filhos dela. E a parte oculta, não necessariamente por estar escondida, mas simplesmente pelo incontornável facto dos olhos só nos mostrarem aquilo que queremos ver, deixa transparecer aquilo de que uma cidade é feita. E não perde beleza por isso, antes ganha vida e alma.



O tempo continua abafado, muito húmido e quente. Nas estradas, com as mais que certas lentidões dum trânsito de milhões, passam por entre as filas de carros estes homens. Magros. Escuros. Aproveitam o trânsito parado para vender bebidas frescas e os famosos biscoitos de polvilho (doces ou salgados) da Globo, ou como eles gritam: "Biscoito Grobo". Fico a imaginar, no conforto do ar condicionado da viatura, como deve ser estar ali fora. A respirar tubos de escape de milhares de carros, sob aquele calor, com aquela estúpida humidade, para a frente e para trás, horas e mais horas, para cima e para baixo. Para vender uma água fresca, para vender uns "Grobo". Isto é agonia.


Olho para cima, não para desviar o olhar e fazer de conta que não vejo, mas para olhar mesmo para outro sítio. E as ironias da Criação decidem juntar-se todas no mesmo momento e entupir-me o cérebro em múltiplas explosões de pensamentos, emoções, conjecturas e interrogações. Sobranceiros estão ali. Impávidos. Praticamente no meio da cidade. Esses necrófagos com olhar guloso e atento a tudo o que se passa cá em baixo. Abutres. Dois e mais dois. Uns quietos, outros mais agitados. Sinto que pouco mais sou que um pedaço de carne. E a miséria só pode ser isto.





Vou continuar a deambular. Sozinho pelo centro. Aquele centro que não é o turístico, aquele que não vem nos guias, aquele que é calcorreado por pés sujos. Com uma garrafa de água numa mão e uns biscoitos doces de polvilho "Grobo" na outra.







9 comentários:

  1. Esse lado é muito forte. Demasiado forte, diria. Chega a deixar-nos tristes. Eu fiquei!

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  2. Esta é a parte "mais viva" deste e de outros locais deste planeta chamado Terra...
    Abracinho

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  3. Cara, agora consegues perceber a minha paixão!!!!!
    Embora seja um país de contradições, aquela mescla de gente diferente, riqueza vivendo paredes meias com a miséria, mas miséria a sério, o cristianismo convivendo alegremente com macumba, búzios, mães de santo e sei lá que mais...., são tantas as crenças que duvido poder mencionálas todas, não cabiam no comentário!!
    Mas uma coisa é certa! o sentimento de que a vida é mesmo para ser vivida, pulsa incontrolavelmente naquela cidade marivilhosa.....naquele pais!!!
    Qual gingado da mulata!!!! o nosso gingado, sim, sim, porque mal saimos do avião, nós, os que gostamos do sol, do mar, da vida.... já vamos entrando e o samba percorrendo a alma!
    Que bom que gostaste!!!!!
    " tem samba di sobra pa quem sabi sambar, qui entre na róda que mostre gingado, mas muito cuidado, não vali chôrá...."
    Sarává!!!
    beijos

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  4. Não resisti!!!
    e, bem sabendo dos contrastes, da miséria, da grande clivagem social, é óbvio que nos toca, seria um absudo ficarmos indiferentes, mas.......mas....!!!!
    Mas não podemos avaliar ou conceitualizar à luz princípios ou vivências europeistas.
    Pois quem convive de perto com um genuino brasileiro, tal como os que tu fotografaste, muito provavelmente conhecerá outras formas de pensar e estar perante a vida!!!
    Não pretendendo sequer valorar!

    Amigo, o lema de uma grande maioria de brasileiros é acima de tudo este :

    "O samba da minha terra
    Deixa a gente mole
    Quando se canta, todo mundo bole
    Quando se canta, todo mundo bole
    Quando se canta, tudo mundo bole...

    Quem não gosta de samba
    Bom sujeito não é
    É ruim da cabeça
    Ou é doente do pé
    Eu nasci com o samba
    No samba me criei
    E do danado do samba
    Eu nunca me separei...

    Samba lá da Bahia
    Deixa a gente mole
    Quando se canta, todo mundo bole
    Quando se canta, todo mundo bole
    Quando se canta, todo mundo bole

    Quem não gosta de samba
    Bom sujeito não é
    É ruim da cabeça
    Ou doente do pé
    Eu nasci com o samba
    No samba me criei
    E do danado do samba
    Eu nunca me separei...

    É que samba lá da Bahia
    Deixa a gente mole
    Quando se canta, todo mundo bole
    Quando se canta, todo mundo bole
    Quando se canta, todo mundo bole

    Quem não gosta de samba
    Bom sujeito não é
    É ruim da cabeça
    Ou é doente do pé
    Eu nasci com o samba
    No samba me criei
    E do danado do samba
    Eu nunca me separei...

    Samba!!

    OBS : depois disto, então pensam no acarajé, na farofa, na carne de sol, nas muquecas......e na forma de as obter, de preferência..............ao sol!!!!

    É Brasil

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  5. Uma visão nua e crua. Verdadeira. Sentida.

    Nunca estive no Rio. Estes posts fizeram-me (quase) sentir lá.

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  6. Malena:

    Mas mesmo numa tristeza de vida profunda, aprendi que se pode ser feliz e estar permanentemente contente, mesmo na miséria. Vem a seguir...

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  7. Maria Teresa:

    E é desta "vida" que tirei muitas e grandes ilações para o meu dia-a-dia. Como sempre, muito gosto pela sua visita e comentário.

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  8. Magui:

    Sabia que responderias a este chamamento. Ao do puro carioca que poucos como tu compreendem. Porque sabem, porque viveram

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  9. Nirvana:

    Um grande obrigado pela visita e comentário. Amanhã... o resto das notas das minhas viagens. Espero que sejam compatíveis com as espectativas.

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