Agora mesmo. Estava a passear o cachorro no que chamam jardinzito aqui ao lado de casa. Tem um campo de futebol, um pedaço de relva e também um parque infantil. Este último pequenino, mas com as coisas básicas. Ou que agora são básicas, como um chão amortecedor, que no meu tempo equivaleu a joelhos esfolados e a sangrar com pedritas incrustadas na carne, em água oxigenada a fervilhar-me nas entranhas, eosina a pintar-me a pele, joelheiras de napa nas calças e pensos rápidos que orgulhosamente exibia no dia seguinte. No douto discurso pedagógico do meu Pai tudo isto me faria um verdadeiro Homem e me prepararia para as pedras muito maiores que me atirariam ao coração e sobretudo às convicções que me incutiu (que agradeço, venero e sigo) quando crescesse.
Mas isso agora não importa.
Ainda agora, ali, no parque infantil, uma mãe bêbeda. Chama-se Tomás, a criança (como não?).
E inebriado fiquei eu. Não sei que pensar, não sei que dizer.
Agora mesmo uma mãe bêbeda brincava com o seu filho Tomás, que não terá ainda três anos. Era uma mãe bêbeda. Que não falava, berrava. Que não andava, corria. Que não deixava fazer, fazia. Mas que não se limitava a ver, amava. Amava bêbeda.
Dos minutos que assisti vi uma mãe bêbeda, mas que bêbeda exalava também amor. Amor bêbedo, mas ainda assim amor.
Não foi a criança, mas sim a mãe bêbeda quem caiu quando tentou subir ela mesma para o escorrega. Não foi a criança, mas sim a mãe bêbeda quem chorou quando isso aconteceu.
Era uma bêbeda.
Mas era uma Mãe, com toda a força da instituição materna que lhe puseram nos ombros quando decidiu que o Tomás seria gente, e ao que parece assumiu integralmente.
O Tomás viu-me. A mim e ao Gui: E começou a gritar "Ão!, ão!" e a apontar para nós.
Decidi aproximar-me e ficar encostado às grades que isolam o parque infantil. A mãe bêbeda veio a correr e a dizer muito alto ao Tomás que não se pode ir ao encontro dos cães que não conhece. Estava bêbeda, mas era Mãe.
Disse à mãe bêbeda que o Gui não fazia mal a ninguém, que se o Tomás quisesse poderia brincar com o Gui.
Vi-lhe os únicos dois dentes que tinha, à mãe bêbeda, sentindo o acre hálito que saía da sua boca, a cara gasta e o cabelo desgrenhado, mas vi-lhe também no rosto o coração de mãe, o amor não etílico e pensei que ao mesmo tempo tantas outras mães, não bêbedas, nunca equacionariam a possibilidade de estar ali a fazer o que ela fazia pelo filho Tomás.
O Tomás agarrou no Gui e o Gui deixou-se agarrar. Deixou que o Tomás lhe desse uma palmada, lhe arrancasse pêlo, lhe metesse os deditos nos olhos. No fim o Gui ainda lhe deu uma lambidela.
Vim embora.
Sem saber o que pensar, sem saber se elogiar ou criticar. Se admirar ou abominar.
Agora mesmo uma mãe bêbeda.
Agora mesmo uma bêbeda.
Agora mesmo uma Mãe.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarQuando era adolescente e rebelde, como qualquer adolescente, a minha mãe dizia-me: "Só vais saber como uma mãe ama um filho quando fores mãe!" Eu achava aquilo uma estupidez e compunha um ar desdenhoso!
ResponderEliminarPosso, agora, dizer que a minha mãe era sábia, como todas as mães, e que é absolutamente verdade! Mãe ama como não se acha ser possível, sóbria ou não!
Deixas-me sem palavras, tomada de lágrimas quentinhas e coração cheio de sonho quando escreves assim.
ResponderEliminarParabéns pela capacidade de veres e sentires o Amor, o Ser Humano para além do preconceito.
Um beijinho muito grande (e uma festinha para o Gui),
Mãe que é Mãe (com M maiúsculo) ama sempre, sóbria ou não. Adorei o texto.
ResponderEliminarBjokas
Já vim aqui várias vezes e tentei comentar. Mas este texto mexe comigo, não tento pelo facto de a mãe estar bêbada, mas mais pela forma como tu vês as coisas.
ResponderEliminarTer uma cabeça boa, saudável, aberta e sem preconceitos como tu tens é um privilégio. Mais do que aquilo que escreves ou da forma como escreves, gosto de ler a tua essência.
Obrigada.
Divulguem PF
ResponderEliminarhttp://espacosdeconvivio.blogspot.com/
Assim irei eu começar nesta caminhada pelos sitios mais agradáveis (ou não) que com o tempo vou visitando. este blog é isso mesmo, um espaço de convivio e quase que uma montra de espaços aconselhados para uns finais de manhã, tarde e noite.
Obrigados
Eu subscrevo a JS.
ResponderEliminarTambém saí daqui várias vezes sem saber o que dizer...porque há coisas que são escritas com alma e essas para mim são difíceis de comentar.
Não mudes.
beijinho
Que texto maravilhoso!
ResponderEliminarQue bela forma de regressar à blogosfera...
Lembrado de mim?
Muito bonito.
ResponderEliminarMalena:
ResponderEliminarMãe é Mãe. E tu sabes disso, Obrigado. É isso mesmo.
Izzie:
ResponderEliminarMuito obrigado (e o Gui também agradece). Elogios assim fazem-me corar.:)
Anira:
ResponderEliminarObrigado! E é isso mesmo. É Mãe, ponto final,
JS:
ResponderEliminarAs tuas palavras deixam-me sem palavras. Mas é por isto e pelas palavras que deixaste que continuo a escrever. Muito obrigado.
Joel:
ResponderEliminarNão obstante o seu comentário ser apenas uma publicidade ao seu blog, aqui não há censura. Felicidades.
Anna^:
ResponderEliminarObrigado. Mesmo, E será difícil mudar. Eu sou assim.....
Daniel:
ResponderEliminarObrigado! Claro que me recordo! Bem regressado ao mundo da blogosfera!
Pazotolamic:
ResponderEliminarObrigado e bem-vindo!
Voltie a este texto porque li este outro
ResponderEliminarhttp://naocompreendoasmulheres.blogspot.com/2010/05/todos-os-homens-bebados-o-sao-por-causa.html. Acho que se completam! :))