Confesso que as minhas manhãs são todas muito complicadas. E digo complicadas para não dizer catastróficas, holocáusticas, apocalípticas e um bocadinho filhas da puta.
Confesso que, não obstante todas as noites prometer que na manhã seguinte não o vou fazer, é certo e sabido que a partir do momento em que escuto os primeiros sons da materialização do juízo final, vulgo "o despertador começar a tocar" vou (in)conscientemente adiantando mais uma estação à minha via sacra matinal, pondo "só mais 10 minutos".
Confesso que nunca são 10 minutos, e que quando tomo consciência das horas, começam-me a sair impropérios dignos de fazer corar de vergonha uma peixeira do Porto, grito em idiomas que nunca aprendi, e em cascata sai uma verborreia de neologismos irrepetíveis.
Confesso que nunca me lembro de tirar alguns objectos contundentes (ou que podem agir como tal) do chão ao pé da cama quando saio disparado.
Confesso que todos os dias o meu fofo tapete se revolta contra mim. Ataca-me, arranha-me e morde-me. Já tentei explicar ao cão que é melhor dormir do outro lado da cama, mas ele parece não querer saber.
Confesso que no duche, encostado aos azulejos, a água se mistura com as lágrimas que teimosamente rolam pela cara, enquanto suspiro e me sai repetidamente um "não quero, não quero".
Confesso que as primeiras vozes que ouço são na cozinha, onde os locutores da TSF me vão alimentando a depressão matutina ora dizendo as horas que já são, ora nunca iniciando as notícias dizendo que o Governo caiu.
Confesso que adoro o cheiro do café acabado de fazer e é aí que o meu cérebro começa lentamente (mas muito lentamente) a dar algum sinal de existência.
Confesso que me angustia o passeio matinal do cão, onde o meu atraso é directamente proporcional ao tempo que ele demora a encontrar o cantinho perfeito para se aliviar e onde, claro está, é mais difícil ir recolher seus moles e quentinhos despojos intestinais. Confesso que não cheira a café.
Confesso que percebo que os meus vizinhos achem que sou o ser mais antipático, estúpido, arrogante e prepotente desde a antiguidade clássica ou desde a era Sócrates (o nosso, não o Grego, que dizem que até era bem educado...), pois aos seus alegres (MEU DEUS, ALEGRES!! MAS PORQUÊ? PORQUÊ?) "bons dias!!!", eu rosno uma coisa parecida com "iqwfjnijiqe", ou "Vá você!".
Confesso que me esqueço frequentemente de trazer o lixo para a rua. E isso deixa-me triste, pois quando isso acontece, faço a felicidade de um cão, que insiste em recolocar tudo o que estava dentro do saco atado e fechado desde a véspera, nos sítios e coisas da casa onde nunca estiveram, mas que ele sabe que eu gosto mais, a saber: sala, sofás, almofadas e tapetes.
Confesso que as manhãs me envelhecem precocemente e se não fossem elas eu era muito mais feliz. Ó se era!