quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O António

Como sempre, o café estava a abarrotar. Gente a almoçar, gente a tomar a bica depois de almoço, gente a ler o jornal.
Por sorte havia uma mesa com uma só cadeira livre, onde me sentei e pedi também a minha chávena cheia de sangue, pois já é só cafeína que me corre nas veias nestes dias.
Entra um garoto, sujo e mal vestido que começa de mesa em mesa a pedir qualquer coisa. Normalmente ou digo logo que não, antes mesmo que abram a boca, ou abano negativamente a cabeça sem sequer olhar ou dirigir palavra. Não é bonito, eu sei, mas já são tantos...
E parece que toda a gente pensa assim, pois essa era a atitude que todos iam tendo.
Chegou a minha vez.
Teria este doze, treze anos?
Cara encardida e olhos pequeninos escondidos no fundo de covas. Pediu dinheiro, que tinha fome e ainda não tinha comido nada hoje.
Houve qualquer coisa diferente naquele pedido. Não sei se pela humildade da voz, se pelo olhar profundo, se pelo tremor do corpo.
Disse-lhe que dinheiro não. Se quisesse um bolo, podia ser, mas dinheiro não.
Olhou para mim com olhos grandes, que não sei onde os tinha escondidos, e numa voz sumida disse-me obrigado. E ficou de pé, em silêncio, quieto.
Não percebi e perguntei-lhe de que estava à espera. Aí foi ele que não percebeu.
- Mas... eu posso escolher, Senhor???
Desarmou-me. Quem é esta criança? Que faz aqui? O que o faz estar aqui?
Disse-lhe que sim, que podia escolher. Chamei uma empregada do café e disse para dar ao garoto o bolo que ele escolhesse.
Correu até à vitrine e percorreu várias vezes com o olhar e corpo a acompanhar, todos os bolos e doces que se apresentavam naqueles 2 metros de paraíso.
Voltou para junto de mim. Sem bolo. Mais uma vez não percebi.
- Olha, senhor (gostei..) em vez de ser um bolo posso comer um pão com manteiga? Eu gosto muito de bolos, mas estou mesmo com fome e queria pão. Pode ser?
A cada segundo que passava mais me intrigava e mexia comigo, aquele garoto. Disse que sim, e voltei a chamar a empregada. Que fizesse um prego no pão. Que desse ao garoto o que ele quisesse para beber.
O puto ficou com uma expressão de Sol no rosto que deu para ver que afinal havia algo mais que sujidade. Algumas rugas.... Seria possível?
- Como te chamas?
- António.
- Olha, já está pronta a tua comida. Vai lá.
- Obrigado, senhor, disse, com uma voz que quase parecia emocionada, mas devia ser a minha imaginação a funcionar.
Fiquei a fitá-lo. Encostou-se ao balcão que era quase maior que ele, e era nítido o esforço que fazia para ver a comida e pegar-lhe. Entretanto já havia mais algumas cadeiras livres. Fui buscar uma, dirigi-me a ele, peguei-lhe nas coisas e disse para se vir sentar comigo.
Começa a comer e notava-se o deleite que lhe provocava o alimento. De vez em quando olhava para mim e parava. Para dizer tão só obrigado.
Não aguentei e comecei a fazer-lhe perguntas.
O António afinal tem 9 anos. Mas a vida já se encarregou de o envelhecer e de o obrigar a ser adulto sem o deixar ser criança. Tem o pai e o irmão mais velho presos. Toma conta da irmã mais nova, que tem 5 anos, enquanto a mãe trabalha. A dias, fazendo limpezas.
Não vai à escola porque não gosta.
- Não gostas da escola? Porquê?
Não era da escola que afinal não gostava. Não tem é cadernos, nem lápis de cor que os outros meninos têm. E os outros meninos não o percebem e ele não percebe os outros meninos. Mas mesmo assim, não pode ir. Tem que tomar conta da irmã. E ter o quarto, onde moram os três, arrumado para quando a mãe chega do trabalho. A chorar, sem ele entender porquê.
Enquanto fala, vai pegando em alguns guardanapos de papel e sigo atentamente os seus gestos, pois cada palavra e cada gesto do António me vão surpreendendo, arrebatando e enchendo de curiosidade.
Metodicamente come apenas metade do prego e começa a embrulhar com muito cuidado a outra metade.
- Para que é essa metade? Para comeres mais tarde?
Não. Não era. Era para levar à mana, que também ainda não tinha comido nada.
O António naqueles minutos estava a ensinar-me tudo que eu nunca tinha aprendido durante todos os anos que tive cadernos, canetas, lápis-de-cor e meninos que percebiam o que eu dizia e eles também percebiam do que eu falava.
Tentei em vão disfarçar uma lágrima que me caíu e que me prometeu que vinham mais iguais atrás dela.
Chamei mais uma vez a empregada. Que fizesse mais 4 pregos no pão. Que os metesse num saco de plástico com outros tantos sumos e desse ao António.
Olha, António, vou ter que me ir embora que já estou atrasado. Fica aqui a acabar de comer. Sem pressas.
Olha, Senhor, posso dizer outra vez obrigado?
Enquanto saía do café ouvi ainda o António a dizer bem alto:

Senhor, Obrigado! Prometo que nunca mais lhe peço nada.

Não, António, promete-me que cada vez que me vires na rua, vens ter comigo, vens falar-me de ti, de como estás, e quem sabe um dia até me vens pedir um lápis de cor, uma caneta, um caderno e dizeres-me que voltaste à escola.

Obrigado a ti, António.
Eu é que tenho que te agradecer. Muito.

7 comentários:

  1. Sem palavras... É só o que te consigo dizer...

    beijo****

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  2. Desta vez sou eu que fico sem palavras.
    Sorte de um menino de ouro ter encontrado alguém com um coração de ouro também.
    Obrigado a ti!

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  3. Creio tratar-se de uma "história" verídica.
    Sou uma pessoa de chorar pouco, mas fez-me chorar. Comparei o António com os meus netos e fiquei "perdida"...perdida nas diferenças tão grandes que há entre elas, que até são iguais, são crianças...

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  4. Oh! o pão não era do dia!... haja vergonha! :D

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  5. Acho que com o teu exemplo, aprendemos nós a olhar para os Antónios que tantas vezes passam por nós,

    :) Um abraço

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  6. Muito obrigado por esta lição comovente :)

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  7. Caríssimos:

    Sim, a "história" é verídica.
    Obrigado pelos vossos comentários. Nestes dias tenho pensado no António e em maneiras de o ajudar. Espero mesmo voltar a encontrar este menino adulto. Bom fim-de-semana para todos.

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